RESENHA: TROPICAL NADA (Tropical Nada, 2023)

Após um hiato de cinco anos, DANIEL FURLAN retorna à Música para realizar um expurgo criativo e produzir um dos discos mais desconfortavelmente catárticos e energéticos da memória recente, reatestando seu talento idiossincrático de maneira categórica com o desconcertante TROPICAL NADA. (FOTO DA CAPA: Yera Dahora)

 

Mais conhecido por seus trabalhos no universo audiovisual (que incluem, dentre diversos filmes e séries, o cultuado desenho Irmão do Jorel e o programa Choque de Cultura), o multifacetado Daniel Furlan é uma figura peculiar que imediatamente chama a atenção por conta de seu senso de humor peculiar e personalidade deadpan, a qual mistura nonsense, secura e franqueza com naturalidade impressionante.

 

Menos conhecido, no entanto, é seu lado musical, o qual se manifestou primariamente na forma do ÓCIO, grupo do qual foi frontman por duas décadas nas posições de vocalista e guitarrista. Oficialmente formado em meados dos anos 2000, o trio capixaba passou por várias formações e uma vasta história até sua dissolução em 2018, vindo a deixar dois LPs (incluindo o excelente Mood Swings) e um EP como testamento.

 

Agora, cinco anos após sua última incursão neste plano, Furlan retorna à Música com TROPICAL NADA, projeto idealizado como ponto de vazão para nuances mais densas de sua voz artística que reitera as características mais preponderantes de sua persona singular e sua criatividade neste visceral disco de estreia.

Concebido durante a pandemia e produzido por Furlan ao lado de Bento Abreu (Solana) e Marcel Dadalto (da antológica Zémaria), este Tropical Nada é um trabalho que pode ser descrito como uma quimera musical de contornos pontiagudos. Composto por dez faixas que trespassam pouco mais de meia-hora de duração, o disco é estruturado sobre uma contraposição desnorteante (ou um abismo, se preferir) entre letras brutalmente confessionais e uma sonoridade de peso e vitalidade contagiantes que exploram as influências musicais de seu autor (particularmente Grunge, Blues e Britrock) com energia e sofisticação, habitando uma zona de intersecção entre a mais pura fossa e a purgação terapêutica sem o menor pudor.

 

Trazendo uma costura de composições que mantém as dores das dinâmicas interpessoais como fio condutor, este registro é regido por um misto de crueza e cinismo que se evidencia desde o primeiro minuto de audição (Beijo de Saliva, que traz um refrão brilhante) e gradativamente revela novas camadas ao passar por passagens de ressentimento (Você É Um Piano Caindo do Topo de Um Prédio Em Cima de Mim e o hit Não Vale Nada) e resignação (a ótima Quem É Meu Pai, Ontem Eu Tive um Pesadelo Com Você e A Gente Não Era Assim) até culminar num final profundamente angustiado (Esqueci o Nome). E é interessante notar como a progressão do disco sugere uma narrativa clara sobre a derrocada dum relacionamento e toda a ladeira abaixo decorrente.

 

No entanto, também é fascinante perceber como a abordagem estética adotada acaba servindo ao propósito de criar um contrabalanço fundamental à franqueza brutal das letras por meio duma sonoridade pulsante, impedindo que a amargura aqui presente se torne intransponível para o ouvinte. Muito pelo contrário: Tal contraste entre forma e conteúdo não apenas confere uma forte carga de humanidade ao trabalho como, estranhamente, cria um senso de familiaridade que o torna estranhamente convidativo. O resultado final é um álbum coeso e inacreditavelmente cativante que, na falta de termo melhor, soa como se o Rubber Soul dos Beatles tivesse sido escrito pelo Bukowski.

FOTO: Raphael Teixeira / Divulgação

Notável também por seu apuro técnico e execução expansiva, este LP é repleto de arranjos elaborados que elevam a musicalidade de seu autor a um novo patamar, empregando suas assinaturas de maneira orgânica e denotando um processo de produção meticuloso que compreende perfeitamente a contraposição que se propõe a consolidar. Com paisagens sonoras dotadas dum dinamismo edificante que beiram a leveza (vide Beijo de Saliva e Ontem Eu Tive Um Pesadelo Com Você), Tropical Nada é um disco surpreendentemente estimulante que, mesmo revelando ocasionalmente seu espírito depressivo (vide A Gente Não Era Assim), convida a repetidas audições.

 

Servindo como mais um retrato das potencialidades anômalas de seu autor, este disco também traz um Daniel Furlan completamente comprometido com a própria identidade musical: Abraçando seu desconforto crônico para explorar sua voz dissonante e talentos como guitarrista com entrega total, Furlan injeta doses cavalares de verve e verdade emocional a cada passagem, consistentemente expressando tanto seu foco admirável quanto sua habilidade para estabelecer uma linguagem bem particular. E não há faixa que ilustre isso melhor que a sensacional Sexo Ruim, que acaba sintetizando o álbum de maneira apoteótica.

 

Hermeticamente realizado, recorrentemente perturbador e constantemente instigante, Tropical Nada é um trabalho que, feito com zelo admirável e vindo dum lugar muito pessoal, simboliza um bem-vindo retorno para seu autor ao mesmo passo que consegue a proeza de se mostrar desolador e revigorante em medidas equivalentes. Iniciando o ano de maneira bizarra, certamente é o disco bad vibes mais empolgante que você verá em 2023.