RESENHA: A SITUAÇÃO (Sara Não Tem Nome, 2023)

Em seu ótimo segundo disco, SARA NÃO TEM NOME encerra uma espera de anos para comentar o caos sociopolítico que tem regido a sociedade brasileira nos últimos seis anos e reiterar sua voz artística com maturidade e eloquência revigorantes no instigante A SITUAÇÃO. (FOTO DA CAPA: Randolpho Lamonier e Victor Galvão)

Desde que despontou no circuito independente em meados dos anos 2010 com uma série de composições registradas em vídeo e um contundente disco de estreia (o intenso Ômega III), a multidisciplinar Sara Não Tem Nome já dava sinais insuspeitos de autenticidade pela mistura altamente idiossincrática de ambição temática, caracterização estética e verdade emocional contida em seu trabalho.

Apresentando à frente uma voz delicada que se contrapõe de maneira intrigante a uma paramentação soturna (tenebrosa seria o termo mais apropriado), a cantora e compositora belo-horizontina encontra a base de suas composições no dueto entre o contraste e a densidade, mesclando letras economicamente incisivas e arranjos cuidadosamente concebidos para criar paisagens sonoras fantasmagóricas que servem ao intuito de acolher e inquietar o ouvinte em medidas equivalentes.

Agora, oito anos depois, Sara retorna com A SITUAÇÃO, registro que não apenas supera o desafio do segundo disco e conduz sua sonoridade a um novo patamar com excelência, como cumpre o papel de eficaz retrato histórico sobre um período caótico na sociedade brasileira, reafirmando sua posição como uma figura de voz introspectiva, mas inegavelmente pervasiva.

Produzido pela artista mineira em parceria com Desirée Marantes e Victor Galvão (seu parceiro no coletivo Tarda), este A Situação é um trabalho que imediatamente chama a atenção por seu escopo abrangente e espírito alarmante: Tendo sua gênese criativa no caos sociopolítico iniciado com o impeachment em 2016 e trazendo doze faixas que trespassam quase 37 minutos de duração, o disco é permeado por passagens sonoramente expansivas que, altamente distintas entre si, se mostram homogeneamente ricas e substanciais em sua carga emocional e simbólica.

 

Podendo ser descrito como uma intrincada costura de reflexões tematicamente conectadas que oscilam entre a contemplação (Ponto Final), a sátira (Cidadão de Bens) e a provocação (Incomoda), este novo registro também atrai pela forma com que consistentemente expressa um senso de inquietude e urgência que se manifesta desde sua abertura (Pare, uma marchinha carnavalesca que surge como uma mistura de mantra e súplica) até sua conclusão etérea (a belíssima Volta, que conta com a participação da pianista Luiza Rozza).

 

Mais que isso: Ao apresentar uma miríade de panoramas elegantemente concebidos e executados tanto em letras quanto arranjos, este LP também se mostra surpreendentemente imprevisível por conta do impacto de suas variações brutais de tom e humor – Vide a contraposição entre a debochada Revés, Volte 4 Casas e a impiedosa Agora, que conta com a participação de Tantão. O resultado final é um trabalho admiravelmente bem-realizado que propicia uma experiência rica e imersiva para o ouvinte que não perde sua força a cada nova audição, mas ganha novos contornos a cada revisita.

FOTO: Randolph Lamonier e Vitor Galvão / Divulgação

Imensamente beneficiado por um time fascinante de colaboradores, este registro também se mostra um exemplo fantástico de colaboração criativa, computando a participação de cada convidado de maneira primorosa. Das linhas de bateria tradicionalmente seguras de Larissa Conforto, passando pelas cordas cirúrgicas de Desirée Marantes (que atingem o apogeu na desoladora Nós) até o trabalho sublime dos sopristas Juventino Dias e João Paulo Buchecha, as performances aqui vistas se mostram uníssonas na riqueza e estatura que trazem a cada faixa, demonstrando o apreço e o apuro na execução do LP (vide Vazio, que traz um evocativo dueto com Bernardo Bauer).

 

Trazendo sua autora em um momento de maior maturidade e domínio sobre sua visão artística, esse disco serve como mais uma vitrine de suas potencialidades: Empregando seu timbre característico de maneira compassada e dinâmica, Sara realiza aqui um trabalho cirúrgico de interpretação das suas ótimas letras, dosando a melancólica (talvez sua assinatura primária, vide Hoje Não) às necessidades de cada faixa e entregando momentos retumbantes de autoralidade no processo (vide a magnífica Parque Industrial, que representa a epítome do disco).

 

Expansivo, complexo e repleto de alma, A Situação é um trabalho sólido e multifacetado que não apenas cumpre seu propósito criativo e temático com louvor, como indica um salto qualitativo na trajetória de sua autora. Vale torcer para que seu sucessor não demore tanto tempo para chegar, mas até aqui, resta dizer que valeu a espera. Belíssima forma de começar o ano.