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Resenha: Incompreensível (Ana Muller, 2019)

 

Em seu primeiro álbum completo, Ana Muller explora o abismo interior com maturidade, elegância e visceralidade aterradoras, realizando seu melhor registro até então e se consolidando como uma autora de qualidade e contundência insuspeitas com o arrebatador Incompreensível. (FOTOS: Matheus Costa)


Desde que despontou no circuito musical nacional em meados dos anos 2010 com vídeos que mostram a força de suas canções e persona singela de forma econômica e direta, a cantora e compositora Ana Muller tem conquistado espaço, renome e uma substancial base de fãs (assim como milhões de views) por conta de sua sonoridade enxuta e, principalmente, pela forma irrestritamente franca com que revela volumes de vulnerabilidade e sensibilidade (vide a sofrida Fragmentar e a resignada Escopo). Tendo realizado um apanhado de registros (que inclui um EP epônimo e uma compilação de singles), a musicista capixaba recentemente deu um salto quântico com Incompreensível, disco que explora seu universo simbólico e amplia sua musicalidade de maneira soberba, representando também seu trabalho mais maduro e corajoso até então.

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Retomando a mistura de sobriedade e solenidade que caracteriza a obra de sua autora (especialmente depois de seu popesco compacto de estreia), este registro é, acima de tudo, um exercício implacável de sublimação: Abraçando a escuridão abissal e o lodo da Depressão como eixos temáticos centrais sem o menor pudor, o álbum já mostra seu propósito no verso inicial da faixa-título que dá abertura à audição para, então, desenvolver uma intensa e passional jornada de auto-diagramação que concilia momentos de angústia sufocante (vide a tenebrosa Meus Demônios), reelaboração (Tem Dia e a própria Incompreensível) e descarrego (Me Leva Pra Casa, Jaci e Eu Vi Você) até culminar em sinais claros de ressignificação (a edificante Quem Era Eu) que se mostram fascinantes justamente por evocar de forma clara a insegurança inerente a tal processo (Eu Não Tenho Medo). Mais que isso: Ao retratar um turbilhão emocional sem concessões e não se propor a oferecer respostas fáceis para as questões que levanta, o disco apresenta uma experiência profundamente empática e intimista ao posicionar o ouvinte junto dum ponto de vista conturbado, merecendo créditos pela coragem das revelações aqui contidas e por adotar uma abordagem crua que pode alienar um público mais casual.



Admirável também por seus aspectos técnicos, o LP (gravado nos estúdios Lab Oi Futuro e Funky Pirata) é um trabalho de clareza e sofisticação impressionantes, permitindo que a voz e o espírito poético de Muller estejam sempre à frente de seus 42 minutos de duração, maximizando o impacto de suas letras confessionais. E é aqui que a ótima produção de Henrique Paoli (André Prando, Melanina MCs) se mostra fundamental para o êxito desta obra: Ao distinguir cada passagem com arranjos contrastantes, mas homogeneamente elegantes e marcantes em sua mistura de MPB e Folk, produtor e autora não apenas conseguem realizar a complexa proeza de tornar palatável a colossal carga emocional das composições, como ainda criam paisagens sonoras ricas que ilustram de forma precisa e magnética a sensorialidade das letras e o estado mental de seu eu lírico. O resultado final é uma obra fluida, altamente imersiva e repleta de nuances que, apesar de extremamente densa, nunca se torna cansativa nem pesada demais para o ouvinte (justamente o oposto).

 

Mesclando temas densos, letras profundamente confessionais, um senso de honestidade brutal e um apuro estético que reequilibra a colossal carga emocional das composições, Incompreensível é um intenso exercício de sublimação em forma de disco.

 

Realizado por um grupo reduzido de músicos que demonstram entrosamento e profunda compreensão sobre o material abordado, Incompreensível também é um registro de performances impecavelmente eficazes: Enquanto Paoli também assume a seção rítmica com suavidade e dinamismo, Felipe Duriez encabeça guitarras, baixos e backing vocals com uma discrição que só se compara ao seu bom gosto (vide a supracitada Tem Dia e a tensa Mel e Cristal) e o ótimo Federico Puppi se torna praticamente a arma secreta do álbum com seus cellos (vide a lindíssima Caravelas, a melhor do LP). No entanto, é fato que o grande atrativo é mesmo a performance de Muller, que não apenas cruza o disco com sua entrega visceral habitual como a eleva a um novo patamar com segurança e graça insuspeitas (a fantástica Inquilino).



 

Rico, complexo e terapêutico no sentido mais brutal que a palavra pode carregar, Incompreensível é um trabalho de qualidade e gravidade irrefutáveis que figura não apenas como um exemplo contundente do poder expurgativo da Música enquanto forma de expressão, mas também como a consagração da voz artística de sua autora e sinal claro dum futuro potencialmente brilhante à sua frente. E que venha o segundo disco, pois precisamos cada vez mais de elaborações tão eloquentes e autênticas quanto esta.

 
 
Guilherme Guio
Guilherme Guio
Publicitário por formação, especialista em Comunicação Corporativa e Inteligência de Mercado, é o editor e redator principal do RTC. Atuando como consultor de Marketing Cultural, resolveu dar vazão aos seus arroubos verborrágicos através deste projeto. Também é tabagista compulsivo, cinéfilo inveterado, adepto de audiófilo e dançarino amador vergonhoso nas horas vagas.

1 Comentário

  1. […] DoSol, Bananada, SIM SP e CoMA) e um catálogo crescente de registros (que inclui o estarrecedor Incompreensível e o ótimo Taquetá Vol. 1), Muller agora retorna com TERNURA, disco que não apenas marca um novo […]

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