A série Dicas dos Convidados é uma forma de apresentar ao público projetos que foram considerados dignos de nota por músicos e agentes culturais convidados pelo RTC no intuito de incentivar a troca sobre talentos que têm dado as caras nos últimos tempos.
Nesta edição de retomada após dois anos, temos o prazer de apresentar as dicas de João Depoli, fundador do portal de notícias capixaba Inferno Santo, sendo também um dos maiores parceiros do RTC. Engenheiro ambiental por formação, guitarrista por vocação, chef amador por hobby e jornalista musical por pura insanidade, Depoli está há três anos operando solitariamente aquele que é o veículo referencial em notícias do circuito musical alternativo do Espírito Santo.
Mantendo uma biblioteca rica de matérias e entrevistas com uma gama gigantesca de músicos e agentes culturais, o IS é um site necessário e de competência insuspeita que merece ser amplamente conhecido e que você pode acessar clicando AQUI ou nos links na home. Sem mais delongas, vamos às recomendações da rodada nas próprias palavras de Depoli:
"Meu primeiro contato com a banda aconteceu durante a segunda semana de vida do Inferno Santo, ainda em 2017, então pra mim eles sempre terão um papel especial em toda essa caminhada. Eu me lembro de ter ido numa festa no Stone Pub para vê-los tocar e entrevistá-los logo em seguida. Eles ainda eram relativamente novos nessa, estavam promovendo o seu homônimo álbum de estreia, e eu os interceptei logo depois da apresentação que, aliás, foi insana. Inicialmente eu conversei com o Guilherme Bozi (guitarra) e o Rodrigo Nogueira (teclado, violão e percussão) na área de fumantes e debaixo de uma leve garoa já nas altas horas da madrugada. A impressão que tive foi de que chegamos ainda nervosos e um tanto quanto desconfiados uns dos outros, mas saímos de lá com um certo sentimento de cumplicidade que perdurou por vários anos. Inclusive, quando eu fui entrevistar o Vinicius Hoffmam (vocalista e gaitista), nós já estávamos abraçados e levamos uma conversa bem descontraída na pista mesmo, no meio de toda a galera. Foi uma ótima noite pra registrar a entrevista inaugural do site e certamente a primeira de muitas surpresas positivas que eu tive.
Embora eu devesse recomendar o primeiro disco deles para que toda essa introdução fizesse algum sentido, vou quebrar o protocolo e indicar o EP que eles lançaram no ano passado, que é o seu registro mais recente. Chama-se Macaco Politizado e, pra mim, é um salto absoluto em relação ao anterior. Apesar dele ser bem pequeno, com só 16 minutos e seis músicas (sendo que uma delas é apenas um interlúdio), ele se mostrou um conjunto riquíssimo, amarrando todas essas faixas numa temática inspirada na “jornada do herói”. Além de participações de André Prando, Phillip Rios e Machete Bomb (cujo cavaquinista e compositor Otávio Madureira também atuou na produção do trabalho), esse EP revelou composições mais maduras e nas quais a voz do Vinicius pôde finalmente brilhar. Essa galera sempre teve um pé na filosofia e na sonoridade descontraídas de artistas como Red Hot Chili Peppers, Gorillaz e Planet Hemp, mas acho que agora eles se depararam com a própria voz. Eles sempre me disseram que estavam à procura do groove e eu acho que, se eles ainda não o encontraram, chegaram muito perto."
"Outro momento especial pra mim foi na época em que o Solveris estava pra lançar seu primeiro disco, Vida Clássica. Eles já tinham ganhado uma certa atenção da mídia com seu primeiro EP, Janela, Acenos & Arquivos (2017), sendo até apelidados de Black Eyed Peas Capixaba, o que eu imagino que deve ter sido um porre. Enfim, tinha muita antecipação em cima desse lançamento e eu fiquei muito feliz e intrigado quando fui convidado pra sua audição prévia, visto que naqueles tempos eu estava mais focado no universo do rock, tendo escrito bem pouco sobre estilos como R&B, rap, soul e jazz — que são os pilares do grupo. Lembro que era uma noite de semana e o encontro aconteceu numa sala bem no alto da Leitão da Silva, no Estúdio Sala de Estar, seu antigo quartel-general. O que mais me chamou a atenção foi observar sua notável dualidade, e eu digo isso no melhor dos sentidos. Enquanto todos ouviam as músicas, a impressão era de que se tratavam de quatro indivíduos inabaláveis, cheios de atitude e com um SWAG nato e imponente. Ao mesmo tempo, quem realmente prestou atenção neles viu quatro jovens adultos morrendo de medo por estarem expondo seu precioso trabalho duro — e isso foi muito bonito, ainda mais considerando a genuína reação estrondosamente positiva de todos que estavam lá toda vez que uma faixa acabava. Terminar aquela noite com todos eles ali no terraço, rindo sob o céu de Vitória foi realmente algo memorável.
Minha indicação poderia ser qualquer coisa já lançada por eles, mas dessa vez não posso deixar de recomendar este álbum. Morando em Vila Velha por mais de 2/3 da minha vida, não tem como não me sentir em casa ao ouvir todas as referências à cidade e aquela abertura repetitivamente maravilhosa: “Vila Velha, vida clássica. Vila Veeelha, vida clássica. Vila Veeeeelha, vida clássica”. Aquilo ali é simplesmente sensacional. Por que eu não pensei num verso desses antes? Quem é capixaba e não abre um sorriso ao ouvir isso só pode estar morto. Até a capa do disco faz referência ao município, com o infame Dunas Motel ao fundo. Brilhante. A Morenna e os rapazes, 6ok, Magro e Leozi, são extremamente autênticos e com um senso de identidade invejável, e tudo isso se reflete em seu trabalho. Cabe apontar que esse não é um grupo que funciona apenas no estúdio. Suas performances também são espetáculos. Não é à toa que digo seguramente que o melhor show que vi no ano passado foi o deles — e curiosamente com a abertura do Zé Maholics. Acho que isso já diz muito, né?"
"Diferente dos grupos anteriores, meu encontro com as Melaninas (como são conhecidas por aqui) foi puramente por acaso. Naquela época eu estava tentando expandir os horizontes sonoros do Inferno Santo e me entreguei a uma imersão absoluta em estilos diferentes do rock. Foi nessa premissa que acabei rumo à antiga Casa Verde, no Centro de Vitória, para ver um show das MCs Afari, Mary Jane, Geeh e Lola. Eu não sabia o que esperar, mas nunca vou me esquecer como aquela apresentação foi absurdamente real e elucidativa. Muito mais que uma boa desculpa para entretenimento garantido, suas músicas são testemunhos cruelmente reais e vívidos da realidade de suas autoras, com tons que transitam desde a dura melancolia ao esperançoso empoderamento convicto. Aquilo não foi apenas uma música, foi uma aula.
Diante disto, minha indicação é o álbum Sistema Feminino, que marcou a estreia do quarteto. Ele foi lançado logo no início de 2018 e foi muito bem recebido por aí — ah, o jeito descomplicado e espontâneo que a informação parece fluir no meio do rap/hip hop é algo realmente ilustre e invejável. Suas dez faixas são incontestáveis e impetuosos relatos dos desafios diários aos quais a mulher negra está submetida. E, apesar disso, seu conteúdo lírico não assume um papel de absoluto protagonismo frente aos demais elementos das canções. Talvez isso tenha sido culpa da vivência plural do produtor Henrique Paoli (Silva, André Prando), mas um detalhe que merece ênfase na construção dos arranjos deste disco é a participação fundamental das musicistas Gabriela Terra (My Magical Glowing Lens), Thaysa Pizzolato (Auri), Carol Navarro (Supercombo), Larissa Conforto (Ventre) e Anna Tréa. Seja pelas letras (e sua incrível entrega) ou simplesmente pela sua atmosfera sonora, Sistema Feminino deveria ser uma audição obrigatória a qualquer um que se importa com música."
"Ok, talvez essa seja a mais, senão a única, indicação que pode parecer meio absurda nesse conjunto todo. “O que é terrorturbo?”. Pois é, as chances de você estar se perguntando isso são altas. Eu também teria a mesma reação caso eu não tivesse sentado naquela sala de aula quando tinha uns 12, 13 anos de idade e fui surpreendido por uma das figuras mais cruciais do microcosmo musical das primeiras engatinhadas da minha adolescência. O nome dele era Gimu, ou era assim que as pessoas o chamavam, e ele foi meu professor de inglês por alguns anos. Naqueles tempos eu só me importava com música, então quando ele mencionou que tinha uma banda — chamada terrorturbo ainda por cima —, ele instantaneamente se tornou a pessoa mais cool e venerada do meu ínfimo universo. Mas o choque mesmo veio quando ele me mostrou suas músicas pela primeira vez. Acho que a minha mente preguiçosa ainda não tinha explorado muita coisa além do punk rock, então escutar músicas predominantemente eletrônicas e recheadas de elementos oitentistas e lo-fi certamente foi como encarar um alienígena. Por sorte, eu perseverei e consegui assistir diversos de seus shows e, em retrospectiva, vejo que isso foi uma das melhores coisas que já me aconteceu, porque abriu aquele instinto de curiosidade sonora que é algo ao qual nós, amantes de música, temos que ser para sempre agradecidos.
Infelizmente, eu não tenho um disco para recomendar, visto que a banda desapareceu por volta de 2009 — bem antes da facilidade extrema de se ter uma pegada digital como nos dias de hoje. Embora eles tenham lançado dois EPs, estes foram distribuídos naquela saudosa embalagem caseira feita com CDs regraváveis e muitas xerox baratas para compor suas capas. Felizmente, o Gimu — que hoje vive no Rio Grande do Sul e segue numa carreira solo pautada na dark ambient e drone music —, conseguiu resgatar algumas canções da terrorturbo e colocá-las numa playlist no YouTube. Essas faixas misturam elementos orgânicos e digitais com aspectos da música pop e eletrônica de grupos como Joy Division, Kraftwerk, The Smiths, New Order e Ladytron. Vale a pena conferir."
"Eu poderia aproveitar o momento para indicar a minha própria banda, mas isso seria muita cara de pau — veja como eu acabei de fazê-lo mesmo pagando de pessoa consciente e sensata [risos]. Em vez disso, eu preciso falar sobre um dos meus grupos favoritos de todo Espírito Santo: os stoners da Blackslug. Minha primeira interação com eles também aconteceu nos primórdios do Inferno Santo, exatos dois dias após meu encontro com o pessoal do Zé Maholics. Na ocasião, eu fui ao Liverpub Vitória para assistir seu show e também entrevistar o Leonardo Machado, seu vocalista e guitarrista. O plano saiu melhor do que esperado e eu consegui uma das melhores conversas que já tive com qualquer músico daqui.
O que eu não imaginava é que eu também sairia de lá com muito mais do que uma entrevista, mas com um grande amigo e constante apoiador de todo o rolê do Inferno Santo. Não demorou nem um mês e nós voltamos a nos encontrar quando ele me convidou para assistir sua banda no Rock a Rock Festival, que aconteceu no Pavilhão de Carapina em dezembro. Logo depois de sua apresentação, nós dois partimos com a Larissa Pacheco (Big Bat Blues Band) para a Casa Verde, onde eu acabei conhecendo o Melanina MCs (vide relato acima) e também recebendo o convite para acompanhar a gravação do novo EP da Blackslug, que aconteceria logo mais, em janeiro.
Todos esses pequenos momentos me levam à minha última indicação, que é o EP Old Habits Die Hard (2018), que saiu pouco depois, em março. Sucessor do álbum Scumbag Messiah (2014), esse é um registro bem significativo pra mim, porque eu estive nos bastidores de toda sua gravação e ouvi aquelas músicas durante horas e horas ao longo de um mês inteiro. O que eu posso dizer é que o talento de Machado e companhia é inquestionável. São três faixas poderosas, pesadas, honestas e reais, além de serem tão divertidas quanto perigosas — o que eu imagino ser um dos maiores elogios que uma banda de rock possa receber. Só é uma pena que outras músicas não saíram dessa sessão, visto que as atividades da banda acabaram sendo paralisadas alguns meses depois com a ida de Paulo Emmerich (guitarra e voz) e Hugo Ali (bateria) ao exterior. Apesar disso, este EP fica como o retrato de um grupo de músicos unidos pela cumplicidade e paixão pelo que faziam juntos. Segundo o próprio Léo: “representa que eu finalmente consegui fazer um time mais ou menos funcional”.