Videoclipes são complexos por definição. Articulados a partir das mais distintas propostas e com os mais variados propósitos em mente, tais peças se distinguem infinitamente em forma, conteúdo e abordagem, mas inequivocamente se assemelham no objetivo central de estabelecer um diálogo com a faixa que acompanham e comunicar uma emoção ao espectador (seja ela consonante ou divergente em relação à faixa correspondente). No entanto, volta e meia nos deparamos com clipes que não apenas cumprem esta dupla função como ainda extrapolam a sonoridade à qual estão atrelados e criam camadas adicionais de significado, num intrigante processo expansivo que lhe confere vida própria. E é exatamente isso que ocorre com AQUARELAR, clipe da segunda faixa de CURA, o ótimo disco de estreia da banda paulistana VIRATEMPO.
Produzido por Gimpa e dirigido pela dupla Daniel Ferro e Marcello Costa, o clipe traz a mescla duma série de imagens evocativas que oscilam entre o surrealismo e o prosaico com transições caleidoscópicas que conferem um ar psicodélico e transcendental à obra. Com um visual deliberadamente cartunesco (fruto da rotoscopia, método de animação empregado na sua realização) e todo baseado no uso ostensivo de cores sólidas, o vídeo automaticamente chama a atenção pela forma com que se adequa perfeitamente à faixa atrelada (e ao senso de ironia contido nesta) e apresenta seus elementos centrais de forma centrada e extremamente focada para, gradativamente, distorcê-los numa progressão que não apenas acompanha a cadência do som como registra visualmente os temas contidos na letra de forma admirável.
E é aqui que este trabalho se revela genuinamente digno de nota: Ao adotar esta abordagem para ilustrar a mistura de nostalgia e resignação declarada pelo eu lírico em meio à sonoridade vivaz (a qual cria um forte contraste com o que é dito), o clipe vai além e abre espaço para sugerir nuances e subtextos que não estão evidenciados na letra através de simbolismos contundentes (vide a mosca, o relógio e a torneira), indicando os angustiantes volumes de conflito interno do eu lírico (vide a autodestruição sugerida pelos cigarros e pelas latas) que são movidos por universo de sentimentos não-declarados (como recalque, mágoa, desejo, dúvida e uma falta profunda) e projeções, numa leitura que lhe enriquece brutalmente. E a montagem reversa ao final se mostra fascinante por permitir que o espectador faça sua própria interpretação sobre o que foi visto, sobre o que aquela catarse realmente significa e de como foi processada.
Melancólico, estranhamente contagiante, visualmente rico e com um senso efluente de humanidade, Aquarelar é praticamente um exercício terapêutico em formato audiovisual que não apenas comprova o talento de seus autores como registra categoricamente sua imensa sensibilidade. E que o pathos e a inteligência vistos nesse exemplar sejam indício do que é possível esperar em registros futuros. Enquanto isso, vale assistir repetidamente.