Recorrentemente citado nas páginas do RTC por conta de sua sonoridade dinâmica, inventiva e dotada duma sensibilidade bem particular, o cantor e compositor capixaba André Prando constantemente impressiona pela forma com que confere uma mistura de apuro estético, energia arrebatadora e passionalidade intimista a cada uma de suas composições e apresentações. Tendo manifestado seu talento com propriedade numa série de registros homogeneamente admiráveis (incluindo o EP Vão e os excelentes Estranho Sutil e Voador) e conquistado espaço no universo da música brasileira ao longo dos últimos seis anos com sua persona magnética, Prando agora retorna no contexto de um dos episódios mais caóticos da contemporaneidade com CALMAS CANÇÕES DO APOCALIPSE, compacto que não apenas reitera sua força como autor, como ainda revela novos tons de maturidade e serve como um empático chamado para todos aqueles que se encontram à beira do desespero diante das circunstâncias.
Realizado remotamente durante a Era Covid-19 junto de um leque abrangente de colaboradores, CCDA imediatamente chama a atenção por conta de seu processo produtivo: Trazendo duas canções inéditas concebidas com um grupo de compositores que inclui a banda Biltre, Luiz Gabriel Lopes e Felipe Duriez, o compacto de três faixas foi materializado à distância em cooperação com músicos como Rick Ferreira (Guitarra / Pedal Steel), Carlos Sales (Percussão), Federico Puppi (Cello) e o parceiro recorrente Jackson Pinheiro (o qual assume a edição e mixagem, além do baixo), num movimento de comunhão criativa que soa como um ato de resistência diante do próprio contexto de sua criação. No entanto, este fator dicotômico também se manifesta de forma contundente em aspectos líricos e estéticos do EP: Ao abraçar uma caracterização primariamente acústica para acompanhar reflexões fundamentalmente existencialistas, Prando e cia criam um contraste acentuado entre a leveza inerente dos arranjos e a densidade das letras aqui presentes, transformando esta obra num verdadeiro exercício de sublimação que encontra na Música não apenas uma forma de expressão e alento, mas de reelaboração introspectiva em face de um cenário catastrófico.
Vale ressaltar que esta contraposição já se torna evidente desde a faixa de abertura, Gatinho na Internet. Embalada por uma vibe flutuante de ares reggae e carregando um refrão pegajoso que grita radiofonia, esta primeira track revela seu caráter confessional e seu peso já nas duas primeiras estrofes. Referenciando questões substanciais como o crescente colapso social que assola o mundo, a hostilidade patente nas relações contemporâneas, a falácia do escapismo constante como forma de autopreservação e a depressão oriunda dum brutal desgaste mental, Gatinho é a excisão dum azedume emocional que traz uma problematização holística a reboque e que tem seu senso de intimidade acentuado pela participação da família do compositor (sua esposa, Luara Zucolotto e seus gatos, Larika e Chapado). E é interessante notar como que a forte carga aqui notada é narrativamente atribuída na faixa seguinte.
Se Gatinho na Internet é um grande descarrego que merece crédito pela forma inteligente com que emprega um clima lúdico para desnudar a conturbação espiritual e mental de seu eu lírico, Dharma, segunda inédita e faixa subsequente do compacto, representa o início dum processo de ressignificação e passagem cabal na qual o EP mostra a que veio: Ao conduzir uma balada solene, Prando realiza uma melancólica reflexão sobre sua condição como indivíduo e artista, convidando o ouvinte a refletir sobre a ideia retumbante de que a força interior não é reconhecida (ou reconquistada) por meio do embate e da auto-imposição desmedida, mas da prática da gratidão, da compaixão e da auto-aceitação, resultando na ótima passagem que conclui a faixa com uma doçura genuinamente tocante.
Por final, a versão de Clamor no Deserto conclui o compacto e o arco narrativo nele estabelecido de forma surpreendentemente edificante: Trazendo uma das performances vocais mais sutis já realizadas por Prando, esta reinterpretação emprega o arranjo de cordas do italiano Federico Puppi e a magnífica letra de Belchior (um dos ídolos do músico) para carregar um intenso e sóbrio chamado para a perseverança diante das trevas e da perspectiva de uma era além da tempestade, capitalizando em cima da carga emocional das faixas predecessoras para potencializar sua mensagem de forma precisa, culminando numa declaração simples que encerra a audição com potência inequívoca:
Ei-ei-ei-ei, meus amigos, um novo momento precisa chegar
Eu sei que é difícil começar tudo de novo
Mas eu quero tentar
Conciso, profundo e repleto de alma, Calmas Canções do Apocalipse é um trabalho catártico que não apenas reitera a presença de espírito de Prando enquanto autor como dá voz ao turbilhão emocional e ao pânico existencial causado pela pandemia, ilustrando de forma nítida uma nuance do zeitgeist atual. E o maior mérito deste trabalho não se encontra necessariamente em seus competentes aspectos técnicos ou na forma com que expressa o senso de impotência e angústia vivenciado (em maior ou menor grau) por boa parte da Humanidade neste momento, mas na forma com que expõe um universo de vulnerabilidade para convidar o ouvinte a ousar ter esperança em tempos de penumbra. Como o próprio Prando diz, Tudo que eu canto é o que o mundo dá de volta. E, diante do momento atual, vale a pena tentar cantar nessa sintonia cada vez mais.