Mais conhecido por seus trabalhos audiovisuais junto do grupo QUASE e por sua passagem pela MTV Brasil logo antes de sua reformulação, Daniel Furlan é uma figura peculiar que imediatamente chama a atenção por conta de seu senso de humor bizarro e seu estilo deadpan.
Menos conhecida, no entanto, é sua faceta musical, que se materializou primariamente na forma do ÓCIO, grupo do qual foi frontman por quase duas décadas nas posições de vocalista e guitarrista.
Oficialmente formado em meados dos anos 2000, o trio capixaba passou por várias formações, vindo a rodar tanto no circuito nacional quanto internacional (incluindo uma estadia prolongada na Inglaterra), presenciando o momento de maior transformação do mercado musical independente e deixando três registros em seu repertório.
Sendo assim, fizemos uma entrevista especial com Furlan sobre sua musicalidade, seu trabalho junto do ÓCIO, suas percepções sobre o trabalho com o mercado independente e seu gosto musical. Confira abaixo:
RTC - Você já deve ter respondido isso inúmeras vezes, mas vamos começar pelo básico: Como surgiu o ÓCIO?
D.F. - O ÓCIO foi fundado por mim e pelo Chuck (Igor Peres). Mas consideramos que o começo oficial se deu em 2006, com a formação que se firmou comigo, Rodrigo Larica e Patrick Preato.
RTC - E como vocês eventualmente chegaram nessa sonoridade? Já existia a intenção de fazer essa fusão de Grunge e Blues Rock ou foi algo que veio do processo criativo?
D.F. - Na verdade, começou como uma tentativa de fazer uma banda punk, o que claramente deu errado. No começo, era mais rock de garagem, nada planejado, era o que a gente ouvia na época. Com o tempo, a pegada blues rock, que sempre esteve ali, foi aparecendo mais.
RTC - Além da mescla de Grunge e Blues Rock, uma das coisas mais interessantes no ÓCIO é a contraposição entre a energia do som e a mistura de cinismo e pessimismo das letras de várias faixas (vide Surprise, Surprise e All Right). Esse contraste sempre foi algo premeditado? Como você enxerga essa contraposição?
D.F. - Acho legal esse contraste, mas não é nada premeditado. As letras saem assim sozinhas. Só fui prestar atenção nisso quando você escreveu num review uma vez.
RTC - Outro elemento interessante na banda é a forma com que cada faixa consegue registrar o nível de entrosamento do power trio. Como a dinâmica de criação da banda foi mudando com o tempo?
D.F. - Sempre fomos de ensaiar muito. Um dos motivos do fim é que não conseguimos mais ensaiar. Banda ruim tem que ensaiar, o Rodrigo (Lima) do Dead Fish me deu esse ensinamento valioso. Não somos uma banda de chegar no estúdio ou no palco e fazer a magia acontecer porque somos fodões doidões. Nós gostávamos de estar sempre bem azeitados.
O processo de criação varia de acordo com a música, normalmente era uma música minha ou minha e do Chuck, que eu fazia a letra. Daí a banda ia fazendo o arranjo junta. Botava muita coisa em cima da ideia original. A faísca inicial era solitária e o arranjo totalmente coletivo. No último single tem a No One, que veio de uma ideia original do Larica, talvez isso viesse a acontecer mais se a banda tivesse continuado.
RTC - Recentemente, o ÓCIO fez sua turnê de despedida, encerrando uma história que ultrapassa uma década de atividade e que remete a quase duas desde seu estágio embrionário. Por quê finalizar neste momento, desta maneira e com este EP em particular?
D.F. - Estávamos com muita dificuldades de nos encontrar pra ensaiar, fazer show, gravar, ou mesmo tomar decisões banais cotidianas de banda. E parecia não haver motivação para aproveitar o pouco tempo disponível. E não vejo sentido em continuar uma banda sem poder viajar com ela, tocar em lugares novos e fazer/gravar músicas novas. Se for pra ficar no mesmo lugar tocando as mesmas músicas, eu prefiro a morte mesmo.
Sobre o single, não foi pensado que fosse o último. Já tocávamos Pump Up The Jam nos shows desde a época de Londres, assim como I'll Set Rob's Mercedes on Fire Again, que é uma versão de uma faixa do nosso álbum, Guilty Beat. No One também é uma versão de uma música nossa, mais pesada, que também vínhamos tocando ao vivo em Londres, mas nunca gravamos. Gravamos pra ser o começo de uma nova fase, um álbum se seguiria, mas infelizmente não rolou. Mas eu gosto dele, foi um fim legal.
RTC - E o que acabou sendo deixado de fora?
D.F. - A ideia era que a No One pesada viesse no próximo álbum, assim como as outras músicas novas, que seriam bem mais pesadas do que as desse single.
RTC - Contrastando o processo produtivo deste registro com o dos dois anteriores, o que você acha que foi o elemento mais marcante nas gravações de cada trabalho?
D.F. - No Mood Swings, nós queríamos que soasse exatamente de uma certa forma e ficamos em busca disso no estúdio. No Guilty Beat quisemos captar o momento. Alguns erros eram bem-vindos, gravamos todos juntos e evitamos ao máximo manipular na pós. Não misturamos takes nem usamos quase nenhum autotune. É bem menos editado, os instrumentos vazam um no microfone do outro. O single é um pouco dos dois estilos: O mais pós-produzido com o mais natural. As únicas coisas diferentes é que, pela primeira vez, gravamos uma versão duma música que não é nossa e usamos violão nas outras duas faixas. Ficou meio folk, mas espero não levar uma pedrada por dizer isso.
RTC - Diante dos encerramentos das atividades do ÓCIO, vem a pergunta: Existe alguma ação planejada em torno da obra da banda? Algum lançamento “póstumo” em vista?
D.F. - Estou querendo fazer clipes pras músicas. Sou escravizado pelo Audiovisual.
RTC - Ao longo de todos estes anos, você esteve à frente de uma banda independente que passou por diferentes formações, gravou em períodos e contextos bem distintos, transitou em diversos circuitos, passou por diferentes países e participou de um dos períodos de maior transformação do mercado musical. Para você, quais foram os maiores percalços e aprendizados ao longo da sua história com o ÓCIO?
D.F. - Não aprendi nada, eu acho.
RTC - É possível afirmar que você é um cara polivalente, já que, além de músico, você também é ator, apresentador e roteirista. Mas quais os maiores contrastes destas atividades com sua posição enquanto músico e frontman? Quanto que atuar e escrever te somam como músico (e vice-versa)?
D.F. - Talvez "atuar" em clipes se torne mais natural. E escrever as letras também. Fora isso, acho que são universos bem diferentes.
RTC - E como é o seu processo criativo com a Música? Qual é o seu ponto de partida e como você costuma criar musicalmente, tanto sozinho quanto em conjunto?
D.F. - Algumas músicas saem muito rápido, mas, na maior parte dos casos, eu fico tocando um mesmo riff por muito tempo, obsessivamente, até que ele vira uma música. Pego pedaços de ideias de letra que tenho e tento escrever o resto com alguma unidade. Mas nunca deu certo.
RTC - Você tem uma maneira bem peculiar de tocar guitarra e cantar, dada a maneira como você executa os riffs e canta melodias que ora parecem ir em direções opostas à guitarra, ora se tornam dobras dela. Como você chegou neste estilo como guitarrista-vocalista?
D.F. - Toco como toco porque não sei tocar muito bem, nem nunca foi essa a minha intenção. Talvez tocar um pouco melhor me fosse útil. Mas a questão das melodias nem sempre seguirem a guitarra vem de quando era moleque e reparei que as músicas que eu gostava eram assim e me pareciam mais interessantes mesmo, daí comecei a tentar fazer desse jeito. Que bom que alguém percebeu.
RTC - Seu setup de guitarra também é interessante. Lembro que em alguns shows que vi, você usava uma ES-335 com um timbre altamente sujo e repleto de drive num arranjo que era bem inusitado. De onde surgiu este tipo de combinação? Quais equipamentos você tem usado ultimamente?
D.F. - Nesse último single, acho que finalmente cheguei no meu setup ideal. A guitarra, na verdade, é uma Gibson Lucille que comprei usada e que é dos anos 80, acho. É uma semi-acústica fechada porque queria o timbre da semi-acústica mas que também pudesse fazer um esporro muito alto. O amp é um Vox AC15 porque eu queria o AC30, mas não consigo carregar, e o pedal é um daqueles pré-amps valvulados da Blackstar. O violão de aço é um Tanglewood e o de nylon é um Di Giorgio Autor 3 ou 4 que é, na verdade, da minha mãe. Ou meu, não me lembro se ela me deu. É bem antigo, dos anos 70, e não soa como esses atuais deles. É bem melhor.
RTC - Sendo um músico com anos de experiência e estrada, assim como habitante de um dos maiores pólos urbanos latino-americanos, o que você tem achado da cena musical independente atual? Alguma banda ou artista independente nacional tem atraído a sua atenção recentemente?
D.F. - O melhor novo nome pra mim é a Elza Soares. Aquele disco, A Mulher do Fim do Mundo, é uma das melhores coisas que já aconteceu no planeta Terra.
RTC - Anos atrás, você disse numa entrevista sobre o Guilty Beat que ser um artista independente é ter a liberdade para fazer o que se quer sem ter recursos para tal. Atualmente, qual conselho você daria para artistas e bandas independentes que estão começando?
D.F. - Quem sou eu pra dar conselhos? Tenho interesse em receber conselhos, especialmente de quem está começando com ideias frescas. Eu só acho que temos que tentar fazer as coisas do nosso jeito em vez de tentar adivinhar o que os outros querem. Ninguém sabe o que quer.
RTC - Após o fim deste capítulo na sua vida como músico, quais os planos pós-ÓCIO?
D.F. - Nenhum plano nunca.