Oriunda da riquíssima onda de nomes surgidos no Espírito Santo ao longo dos anos 2010, a cantora e compositora Joana Bentes teve sua trajetória iniciada com um canal YouTube no qual reinterpretava composições de nomes tão diversos quanto Leoni, Moska, Mombojó, Zélia Duncan, entre tantos outros. Despertando o interesse do público a partir de suas releituras, viu sua carreira autoral ter um pontapé inicial na segunda metade da década com sua mudança para Brasília e o subsequente lançamento do compacto Entre (de 2017), posteriormente vindo a se realocar para Belo Horizonte e dar continuidade ao seu trabalho por meio de uma série de singles que incluem Aqui, O Mal vai Morrer de Alegria, a ótima Última Música e Presa (realizada em parceria com Nath Rodrigues).
Agora, Bentes inicia um novo capítulo em sua história e consolida sua posição artística com A Gota do Mar Contém o Oceano Inteiro, primeiro álbum completo que serve tanto como um comedido exercício de exploração musical quanto uma eficaz expansão estilística que não apenas confere novas camadas de dinamismo e jovialidade ao seu trabalho, servindo também como um claro atestado de autoralidade.
Concebido, produzido e realizado pela artista durante o contexto da pandemia do Covid-19 como parte de um processo de recomposição pessoal e ressignificação diante do caos vigente (ponto abordado categoricamente na bela Kintsugi, que surge como a faixa-símbolo do registro), AGMCOI imediatamente se distingue de seus predecessores pela maneira com que traz um intrigante senso de espontaneidade e experimentação que pode ser percebido tanto em suas letras quanto em sua sonoridade. Abdicando um pouco do preciosismo formalista e do ar reverente de registros passados (particularmente Entre) em prol de uma abordagem mais despojada e modernosa, o disco é composto por oito faixas - duas destas versões, uma sendo Pra Ver a Voz, de Flávio Triz, e a outra uma ótima reinterpretação de Eu Preciso Aprender a Só Ser, de Gilberto Gil - que trespassam quase meia-hora de duração e criam um retrato multi-facetado e autobiográfico de sua autora.
Da abertura sentimental (a popesca Não Cabe Você) até seu encerramento despojado (a revigorante Onde Ainda Vou), AGMCOI é um trabalho edificado sobre uma série de reflexões identitárias que não apenas dialogam diretamente com o contexto de sua realização, como abordam questões caras aos tempos atuais (como nostalgia opressiva, dúvidas existenciais, carência afetiva, entre outras) com honestidade e coesão. Com uma proposta estética fortemente calcada no uso de beats, sintetizadores e influências de R&B, Dream Pop e Trap que se mesclam à natureza cancioneira de Bentes com naturalidade, este registro também é imbuído de um senso de solenidade que permeia cada passagem de maneira dosada, dando liga às suas diferentes paisagens sonoras e estabelecendo um clima pervasivo que transforma a audição numa experiência imersiva e pontualmente melancólica, mas jamais cansativa ou soturna.
Vale ressaltar que esta característica tem sua eficácia baseada em um dos pontos mais impressionantes do disco, que é seu percurso cirurgicamente compassado. Transcorrendo com um senso de timing de precisão suíça. o LP é marcado por uma abordagem calculadamente deliberada que permite que cada música se desenvolva com calma, mas jamais se alongue além do necessário ou dilua a força lírica existente. E o fato de que esse passo não apenas pode ser percebido em cada passagem da tracklist, mas também no disco como uma audição contínua (várias transições entre faixas passam despercebidas, tamanha a suavidade), representa o nível de foco e disciplina alcançado por Bentes como autora.
Trazendo Joana Bentes em seu melhor momento até então, AGMCOI serve como uma prova irrefutável das suas vastas potencialidades como musicista e entidade criativa. Demonstrando seu talento como produtora e compositora com autoridade insuspeita (vide Saudade (Que Não é Ruim), a melhor do registro), Bentes demonstra enorme segurança em sua investida tríplice, expressando volumes de expressividade e potência ao abraçar um caminho marcado pela discrição e pelo comedimento (vide a introspectiva Ventania, a etérea Todo Dia e a supracitada Pra Ver a Voz, que ainda conta com uma participação marcante de Rafael de Souza no baixo). É um trabalho controlado que demonstra o nível de auto-conhecimento adquirido pela cantora e compositora, refletindo o tema central da obra com elegância.
Conciso, classudo e cativante em medidas equivalentes, A Gota do Mar Contém o Oceano Inteiro é um disco sincero e singelo que não apenas traduz sua verdade emocional de maneira altamente bem-sucedida, como oferece provas cabais da sensibilidade particular de sua autora. E que o resultado visto aqui seja o prenúncio de novos movimentos tão admiráveis quanto este e indício de uma rica carreira para esta figura tão carismática. Vale a pena conferir com calma e apreciar por diversas vezes.